domingo, 13 de setembro de 2020

História da riqueza no Brasil Parte 1

 

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Três intelectuais de expressão saúdam o novo livro de Jorge Caldeira, História da Riqueza no Brasil, com frases como "ele muda a eixo de apreciação da história do Brasil", Fernando Henrique Cardoso; "o livro que o leitor tem nas mãos é um clássico", Mary Del Priore; ou "correlaciona suas análises com instigantes avaliações da atuação de pessoas, costumes e governos, que se desdobram no correr dos tempos históricos da vida brasileira", Celso Lafer. De fato, o livro é um monumento e não deixa nenhum leitor, dos mais leigos aos mais eruditos, sem uma sensação de descoberta de traços de nossa história que explicam e justificam quase tudo que de bom e ruim contabilizamos do decorrer de nossa saga da vida privada e pública no decorrer destes mais de cinco séculos. Adequadamente, o livro é dividido em quatro etapas: a do Brasil Colônia (1500/1808), na qual, apesar do sistemático saque português de alguns produtos, o Brasil cresceu mais que o Ocidente na época; o Império, período no qual a centralização governamental estagnou o Brasil, enquanto o Ocidente explodia devido à liberdade de empreender; a Primeira República, com a volta do liberalismo econômico, durante o qual nosso mercado se multiplica; e de 1930 para cá, com a sequência de governos centralizadores, quando tivemos o resultado inicial de crescimento maior devido ao “fechamento” da economia, mas o desastre na era da globalização, quando ficamos fora da maré que transformou o mundo.

Nesta edição das Resenhas CENP publicamos a primeira parte da análise sobre a obra.
Em seu Prefácio, o autor explica que para entender o fenômeno da construção da riqueza no Brasil é preciso se despir de certos preconceitos, como o de considerar economias de subsistência e baseadas em sistemas de trocas não monetárias como um formato que não levaria à acumulação de bens e mecanismos de melhoria da vida das pessoas, pois foi exatamente isso que aconteceu nos primeiros 300 anos da história brasileira, nos quais o poder colonial central se limitava a explorar parte da economia extrativista, começando pelo pau-brasil e depois se incumbindo da cana-de-açúcar e da mineração.
Ele também discorre sobre outro fenômeno nacional, o dos governos consuetudinários, que deixam à própria população as principais decisões e poder sobre como se organizar e se governar. Isso aconteceu na maior parte da extensão territorial do País por muitos anos e até no momento de redação do livro, 2017, ainda acontecia com algo como 11% de nosso território. O que significa, aliás, que o Brasil foi durante bom tempo autorregulamentado, o que agora volta a ser sugerido para alguns setores para resolver o impasse da burocracia, seguindo o exemplo da nossa publicidade.
O terceiro ponto levantado por Caldeira é em relação à questão dos clássicos e da escrita, o que levou inúmeros historiadores a considerar como história apenas o que estava regularmente relatado de forma lógica (ou quase) em documentos oficiais. O que levou um grande número de fatos a ficarem de fora da história oficial, como se dela não fizessem parte. Razão pela qual esse livro se propõe "a juntar materiais, vindos de disciplinas diversas, num todo que faça sentido para todos os leitores (e não apenas para os especialistas), num conjunto capaz de integrar os resultados obtidos por meio de novas formas de conhecimento".

Alianças, colônia e o mundo do Antigo Regime
 
Na etapa na qual analisa o início de nossa história econômica, o autor revela a existência de "uma sociedade radicalmente nova, instituições mescladas e governos locais eleitos que sustentam uma economia dinâmica, em contraste com um governo central que só retira recursos e um Ocidente que cresce lentamente".
Esta é a parte mais surpreendente do livro, pois contraria a crença comum da baixa inatividade econômica e de uma certa incapacidade dos nossos indígenas. Pelo contrário, eles eram ativos e conseguiam, a seu modo, e com pouco trabalho, gerar excedentes que garantiam alimentação farta e vida relativamente agradável enquanto a Europa passava necessidades.
Por não escreverem, seus feitos não eram registrados e passados para a frente, mas sabiam cultivar produtos como milho, mandioca, tabaco e algodão - todos então desconhecidos no velho continente.
Destaca-se, neste particular, outro fenômeno que marcou nossa cultura, a miscigenação, pois passaram a ser comuns os casamentos entre europeus - os lançados, para aqui estabelecerem raízes - e as índias. O que os chefes indígenas queriam era que os "genros" trouxesse progressos para o grupo, o que os objetos de ferro ajudavam a materializar e levou um grupo mais dinâmico de europeus a se destacarem.
Assim, os portugueses passaram a dançar conforme a nova música e o máximo que o rei, Dom Manuel, fez foi emitir as Ordenações Manuelinas que, na prática, estabelecia uma espécie de "organização da desigualdade".
Outro conceito essencial na formação do Brasil colonial é o de vila, com suas estruturas simples, mas fundamentais na estruturação da sociedade nacional, que é o igreja e, mais tarde, escola, da câmara de vereadores, eleita com regularidade, e dos mecanismos básicos de governadoria da coisa pública, além do comércio e de certos equipamentos funcionais básicos para a economia local, como os engenhos de açúcar e mercados públicos, que a partir do modelo de São Vicente, foram se espalhando pelo País.
Após comentar sobre as experiências, a maioria mal sucedidas, de dividir o Brasil em pedaços maiores, as capitanias, o autor entra na organização do governo geral, primeira tentativa de dar unidade à imensidão territorial do Brasil, a partir de Salvador.
Na realidade, porém, essa era uma tarefa ingrata e outra nação européia, a França, conseguiu se imiscuir em terras brasilienses, repetindo a mesma "receita" que os portugueses e estabelecendo com os Tupinambás, entre o litoral do Maranhão e do Rio de Janeiro (com exceção do recôncavo baiano), uma série de alianças que cimentaram não apenas as relações entre esses povos, mas ajudaram a levar para a Europa, além do pau-Brasil, o algodão e o tabaco.
Os jesuítas aqui aportaram logo em seguida, na esteira do acordo entre a Espanha e Portugal, e chegaram com método, espalhando-se principalmente na Bahia e no Rio, e atuando, além de suas tarefas religiosas, em organizações laicas, em seu próprio proveito.
O caso dos holandeses no Brasil não perdurou por muito tempo, principalmente porque o sistema aqui implantado era muito custoso para o governo deles e os lucros eram privatizados para a Companhia das Índias Ocidentais. Mas como as coisas não se coadunaram bem, com muitos empréstimos feitos a nacionais não sendo pagos, eles foram se desinteressando e aportaram em outras áreas da América, como as ilhas do Caribe, o estado da Virginia e até Nova Iorque.
Ao final, a partir da segunda metade do século XVII, Portugal se revelou como a única nação européia com poder real sobre o território brasileiro, mas a seu jeito, ou seja, pouco mandava e atuava nas regiões do interior.
Tudo isso se deu enquanto o papel de Portugal se transformava, ou seja, de principal centro de navegação do mundo de então, com seus navios mantendo domínios no Brasil, na Costa Africana, na Índia, em Macau e no Japão, foi perdendo gradativamente esse predomínio para a Holanda e a Inglaterra, enquanto que sua principal colônia se libertava de suas amarras, crescendo fora de seu efetivo controle em boa parte do território. A maior fração da produção econômica se fazia fora de suas vistas, por produtores independentes, donos de seus meios de produção e tomadores de risco. A parte sobre a qual Portugal controlava e tomava impostos era menor.
Mesmo assim, ao final do século XVII, a corte obtinha aqui no Brasil metade de toda a arrecadação de seu império. Mas quase nada disso voltava, pois 75% das despesas eram realizadas no Reino e dois terços do que os brasileiros pagavam em impostos eram transferidos para fora e empregados na economia metropolitana.
Do ponto de vista dos costumes também se dava um arranjo aceitável pelas partes. Apesar das normas escritas pelos portugueses, as leis e costumes Tupis eram aceitas e um amálgama entre elas se processava relativamente bem. Em todo esse arranjo se destacava o fato de que a busca da riqueza dava sentido à vida e o empreendedor era a figura central do sistema.
Enquanto isso a interiorização do Brasil se dava à revelia do poder central estabelecido. Já em 1697 a "dominação" paulista abarcava desde o sul de Santa Catarina (Laguna) até Parati, no interior o domínio se estendia por SC, SP, MT, MS, GO e TO, mais parte de MG - tanto que este "estado" fazia divisa com o Grão-Pará.
O resultado disso só ficou claro na década de 1970, com a adoção de novos métodos estatísticos aplicados à história econômica, quando ficou evidente que ao longo do século XVIII, apesar da ação constante de transferência da renda "excedente" da colônia para Lisboa, a economia brasileira estava em franco desenvolvimento enquanto a metrópole entrava em crise.
Com o final do ciclo do ouro isso ficou mais evidenciado e se pode constatar que o Brasil, apesar de quase três séculos de saques - franceses, holandeses e principalmente portugueses - o país havia crescido muito, mais até que a própria Europa, com o gado, em todo o Brasil; cacau, no Pará, inicialmente; algodão e arroz, no Nordeste e no Sul; além da cana-de-acúçar.
Uma comparação esclarecedora pode ser feita entre as exportações brasileiras nessa virada dos séculos XVIII para o XIX, que eram de 3,8 milhões de libras esterlinas anuais, contra 4 milhões dos Estados Unidos.
O que se pode dizer, no encerramento desse ciclo, é que havia no Brasil "um grau de soberania popular maior do que na metrópole" e que "o governo central não atrapalhava muito o crescimento da economia pelas vias informais".
Além disso, apesar de majoritariamente iletrado, o nosso país vivia a democracia livre de câmaras municipais que eram rotineiramente renovadas e um arcabouço estrutural baseado na simbiose da cultura portuguesa com os costumes Tupi-Guarani, que "organizava o mercado interno, mesmo com o emprego muito reduzido de dinheiro".

 

Coroas e estagnação durante o desenvolvimento do Ocidente
 
A segunda etapa de nossa história econômica, de 1808 a 1889, é caracterizada pelo "transplante para a América e a nacionalização do governo central como Império, que mantém a escravidão e freiam o crescimento, enquanto o Ocidente revoluciona o papel do governo e conhece o desenvolvimento capitalista".
A vinda das cortes portuguesas e dos seus 15 mil cortesãos para o Brasil se deu pela iminência da invasão francesa a Lisboa e aconteceu por uma razão muito prática, entre 80 e 90% do comércio português, então, decorria da reexportação de mercadorias brasileiras e de reexportação de bens europeus para a colônia.
Também foi lógica a abertura dos portos a todas as nações amigas de Portugal e Brasil, a instalação do primeiro curso superior, de medicina, em Salvador, no momento em que 23 faculdades já funcionavam na América Hispânica e quase dois séculos depois das primeiras escolas superiores nos Estados Unidos.
Também coube aos reis portugueses a responsabilidade de trazer a primeira prensa para o Brasil, 358 anos depois da primeira invenção da tipografia.
Muito se conhece sobre esse período no qual o Rio de Janeiro passou ser a capital do Império Português, antes de D. João sentir-se à vontade para retornar a Lisboa e deixar aqui seu filho, D. Pedro, que logo se meteu a organizar uma Constituição para o Brasil.
Seguiu-se um balé no qual o ministro Bonifácio de Andrada tentava impor suas ideias de justiça e igualdade social, D. Pedro acedia um pouco, mas não muito, porque também ouvia outros grupos de pressão, como a Maçonaria; organizou-se a primeira assembléia constituinte, para escrever nossa primeira Constituição, a de 1824, e no final tivemos um documento que concentrava o poder no jovem Imperador, com a função de chefe do Executivo e do Poder Moderador.
Na sequência, fez-se a primeira grande negociata do País, com um empréstimo inglês para que o Brasil indenizasse Portugal pela perda da colônia, mas com sobras para assegurar um fundo ao nosso Imperador e cláusulas que asseguravam diversos privilégios aos britânicos, como o reconhecimento de que Pedro era o legítimo sucessor do trono português e até o reconhecimento dos ingleses ao direito dos brasileiros prosseguirem por mais algum tempo com o comércio de escravos. A brincadeira custou aos brasileiros a soma de 5,88 milhões de libras esterlinas, 18% de nosso PIB, dos quais apenas 600 mil vieram aportar nos cofres do Banco do Brasil.
Seguiu-se um período de algumas escaramuças entre forças locais, o que requereu a contratação de um exercito de mercenários, que sangraram ainda mais os cofres da nação, e nessa confusão, um novo personagem se impõe, o Padre Diogo Antonio Feijó, que se qualificara a assumir a regência do país à beira de uma crise geral, com um Imperador que pensava mais em Portugal, onde estavam seus bens e sua família, e era preciso adotar decisões fortes, como a dispersão do exército de mercenários, a criação de uma guarda nacional e a entrega de seu comando ao então major Luis Alves de Lima e Silva, futuro marechal, que colocou ordem na tropa e colecionou vitória sobre vitória, resultando na pacificação (temporária) do Brasil.
Assim, "no dia 7 de abril de 1835, os brasileiros escolheram como governante um padre que defendia o fim do celibato, um homem que não queria privilégios nem foros especiais de fidalguia, um político que pretendia estender a esfera da responsabilidade para exercer as funções de comandante do Executivo como substituto do rei. Um novo patamar de acomodação entre soberanias opostas seria tentado".
Como se sabe, infelizmente, o novo arranjo não deu muito certo. O primeiro problema foi a Cabanagem do Pará, estado que estava descolado do restante do país por razões geográficas, pois uma viagem a Lisboa durava 20 dias, enquanto a vinda ao Rio de Janeiro, 90. Foi uma luta de mais de cinco anos, durante a qual 20% da população local foi dizimada e sua economia reduzida a frangalhos.
O outro grande problema foi a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, que durou 10 anos, uma vez que o fluxo econômico das partes, resultante da venda de charque para o restante do país, continuou dos dois lados. Mas o governo local foi sendo asfixiado e o final foi a manutenção do estado sob a égide brasileira.
Além de manter a unidade do Brasil, a ação de Feijó se mostrou positiva em vários aspectos da vida nacional, como a aprovação do Código de Processo e o Código Criminal, que substituíram partes das Ordenações do Reino e representaram grande progresso nessa área, como a adoção de princípios iluministas da presunção da inocência, o fim das prisões arbitrárias e a adoção de uma legislação que previa penas iguais para ricos e pobres.
Mas os opositores dessa nova ordem manobraram para encurtar a regência de Feijó, sem passar pelas eleições e em 1840 reintroduziram o Poder Moderador, ao antecipar a posse de D. Pedro II, então com 14 anos, e trazer de volta o cenário de um poder irresponsável.
Não seria possível, a partir daí, a recuperação do Brasil, esgotado por dois governantes sem apreço ao erário público, "pois o efeito maior do gasto público" foi o de "destruir a poupança privada com investimentos improdutivos".
Houve uma reação temporária, durante o segundo império, com o fim do desastroso acordo feito com a Inglaterra e ampliação tanto dos negócios do Brasil com os demais países como um processo de substituição de importações industriais, liderado por Irineu Evangelista de Sousa, o Visconde de Mauá.
Mas nesse meio tempo aconteceu o inevitável fim do comércio de escravos, que abalou a classe econômica dominante, os seus mercadores, e gerou parte das bases para o surgimento de um novo movimento, os Republicanos, que se opunham ao "arbítrio ilustrado" de D. Pedro II e sua mania de tudo controlar, pois este era "o chefe de um governo que, tentando controlar tudo, atrapalhava em vez de construir".
O balanço do Império não foi positivo, portanto. Em 1890, havia apenas 641 municípios no imenso território nacional. "Houve uma certa evolução na taxa de alfabetização, que passou de 2% para 17,4% da população, e alguns cursos superiores foram criados, em especial de direito, medicina e engenharia - mas nenhuma universidade foi criada."
Um verdadeiro milagre foi a forte unidade gerada por uma única língua, falada e entendida em todo o Brasil, por uma população majoritariamente analfabeta.
Lembre-se que entramos nesse século com uma renda semelhante à dos Estados Unidos, mas terminamos o período com uma renda per capita 5,7 vezes menor. Assim, na análise de Caldeira, "por maior que sejam as imprecisões e a falta de compatibilização entre os dados, a tendência geral é clara: o século XIX como um todo, e o período imperial em particular, foi um período de estagnação da economia brasileira e, por outro lado, de aceleração da economia mundial. Foi, portanto, um período de acentuado atraso para o país na comparação com o mundo. Esse foi o cenário encontrado pelos republicanos que chegaram ao poder".

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